Conjur – O Supremo Tribunal Federal julgou mais Habeas Corpus nos últimos 15 anos do que nos 100 primeiros anos de sua existência. Em julho de 2009, 118 anos depois de sua criação em 1891, deu entrada na corte o HC número 100.000. No dia 20 de março de 2023, foi protocolado na corte o HC 226.000. Ou seja, nos últimos 14 anos chegaram ao tribunal 126 mil pedidos do “remédio heroico”, assim chamado por sua capacidade de resolver injustiças e garantir direitos. Em 2020, primeiro ano da epidemia de covid-19, o Supremo bateu o recorde anual com 20 mil decisões em Habeas Corpus.
No STJ, o cenário é ainda mais crítico. De 2000 para 2010, o número de HCs recebidos anualmente pelo STJ cresceu 90%, de três mil para 28 mil. Dez anos depois, houve outro salto: dessa vez, o aumento foi de 50 mil decisões. A numeração dos HCs no STJ já superou 800 mil.
Diversos fatores contribuem para esse crescimento vertiginoso. Entre eles, a crise socioeconômica crônica, que aprofunda a desigualdade social, turbina a criminalidade e, em consequência, leva ao aumento da população carcerária. O Brasil tinha 920 mil presos em 2022, segundo dados do CNJ.
O tráfico de drogas é o principal motivo para o superencarceramento. Isso acontece porque a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) dá margem a interpretações diversas pelos juízes, que costumam aplicá-la com mais rigor e em sentido contrário ao decidido pelas cortes superiores.
O fortalecimento das defensorias públicas também tem peso nesse cenário. A Emenda Constitucional 80/2014 deu oito anos para que toda comarca do Brasil tivesse representação da instituição. O prazo terminou em 2022 sem que o objetivo fosse cumprido, mas as defensorias estaduais e a também a da União, de fato, cresceram e têm atuado mais estrategicamente, inclusive nos tribunais superiores. Essa ampliação tem gerado mais HCs.
O Habeas Corpus é sempre uma opção para a defesa. Processualmente, ele tem prioridade de tramitação, ao contrário dos recursos extraordinários e especiais, que têm admissibilidade cada vez mais restritiva nos tribunais. Por isso, vem se intensificando a aplicação do Habeas Corpus em situações processuais heterodoxas. É o caso da prática crescente entre os advogados de interpor Habeas Corpus em substituição ao recurso extraordinário ou especial. A tendência de usar HC para definir precedentes na área penal causa polêmica, mas dá ares de que veio para ficar. Há críticos quanto a esse modo de atuar. “Jamais um Habeas Corpus poderia ser motivo para formação de uma ‘lei geral’ para tratar de casos que ainda não aconteceram. O STF e o STJ compraram uma tese sobre as teses e o Brasil se transformou no único país em que precedentes são feitos para o futuro”, afirma o constitucionalista Lenio Streck.
Em 2018, a 2ª Turma do STF criou mais uma facilidade na aplicação do instrumento ao conceder pela primeira vez na história um HC coletivo. De relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, o HC 143.641 beneficiou todas as (milhares de) mulheres presas gestantes e mães de crianças de até 12 anos ou cuidadoras de pessoas com deficiência.
O ministro Gilmar Mendes é quem, historicamente, vem concedendo mais Habeas Corpus na Suprema Corte: índice de 15% de concessão. Sua posição magnânima se fundamenta na percepção de que o principal motivo para o superencarceramento no país é o tráfico de drogas e de que a posse de drogas para consumo pessoal não deve ser criminalizada. Para ele, os casos deveriam ser tratados nas esferas cível ou administrativa. Em segundo lugar no ranking de quem mais concede HC no Supremo está o ministro Edson Fachin, que entende que o número de HCs está alavancado pela interpretação mais punitivista que as instâncias inferiores dão à Lei de Drogas.
É importante salientar que a maioria dos pedidos de HC que chegam ao STF são barrados por razões processuais e não chegam a ser julgados no mérito. Dos cerca de 130 mil pedidos de HC julgados pelo Supremo desde o ano 2000, 81% tiveram seguimento negado, foram extintos ou arquivados, enfim, não tiveram o mérito apreciado pelos julgadores. Dos 19% que foram julgados no mérito, 7% tiveram a ordem concedida e 12% denegada.
Algumas decisões paradigmáticas levaram a períodos de explosão de HCs. Uma delas foi quando o STF passou a permitir a execução da pena após condenação em segundo grau, em fevereiro de 2016. Essa posição – que não era vinculante – foi adotada quase que automaticamente em todo o país. Assim, as defesas não poderiam mais esperar o trânsito em julgado das decisões para discutir ilegalidades, o que as obrigou a recorrer ao uso do HC. De 2016 para 2017, a distribuição de HCs no Superior Tribunal de Justiça aumentou 25,8%. Em 2019, o STF voltou atrás e fixou que execução de pena só com o trânsito em julgado. Veio mais uma onda de HCs contra prisões de pessoas cumprindo pena antes de a condenação se tornar definitiva. Até o julgamento das ADCs 43, 44 e 54, que assentaram a inconstitucionalidade da execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, a questão foi sempre trazida em HC.
No STJ o número de HCs também explodiu e é motivo de preocupação entre os ministros da 3ª Seção, que julgam matéria penal. “As últimas decisões relevantes em matéria penal foram proferidas em HCs”, diz Sebastião Reis.
No julgamento do HC 779.289, por exemplo, firmou-se a tese de que não é crime o plantio de maconha para fins medicinais. Há ministros, como Rogerio Schietti, que acham legítimo a defesa usar HC para discutir qualquer outra coisa que não seja a liberdade do réu. “Tudo bem, é um direito e uma estratégia. Mas há de se arcar com os ônus”, diz.